segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Passa-tempo



Em silêncio, no seu quarto, ele ajeitava com cuidado as peças para que não caíssem. Um trabalho paciente, exigente, e caprichoso. Calculava milimetricamente a distância entre a peça que colocava e a anterior, sem se esquecer da que viria depois. Lá fora, a chuva caía silenciosa, sem força ou barulho incômodo qualquer... Uma simples queda d´água decorrente do acaso.

Garoa. Há tempos o céu não fazia garoar assim, eram somente as infinitas tempestades. Faltavam apenas três peças... As oito caixas de dominós que havia comprado encontravam-se sobre a poltrona, vazias, e, partindo do pé esquerdo da cama, uma fileira de peças brancas serpenteava quase todo o quarto, fazendo curvas bruscas à direita aqui, ângulos retos ali, algumas vezes rasante a algum móvel ou objeto que encontrava-se por perto. Colocadas as últimas três, cautelosamente esgueirou-se por dentre a muralha que construiu, os calcanhares grudados aos rodapés nas paredes, a evitar qualquer tropeço. Chegando à cama, rapidamente subiu sobre o colchão, e, sem se sentar, observou lá embaixo o que lhe pareceu uma enorme multidão trajando branco e preto, como que em fila esperando algum fenômeno incrível. A garoa caía.

Tomara todas as providências. Observou a primeira peça, logo ao lado de seu leito. A leve linha preta que a cortava dividia duas metades: A de cima em branco, a de baixo com um único círculo negro. A peça seguinte possuía apenas um círculo na metade superior, e, inferiormente, dois círculos lado a lado, e notava-se que tal progressão se seguia em ordem crescente, até se observarem cinco círculos negros superiormente e seis inferiormente. Após isso, a seqüência recomeçava em uma peça idêntica à que encontrava-se ao lado do pé da cama.

De 1 a 6... O mesmo número de suas lembranças. Fechou os olhos.

-A primeira: 'O pingente prateado que deu de presente... A noite fria, mas agradável. Então, ela: Os cabelos castanhos, quase negros; Os olhos verdes embalados no leve cheiro de piscina, como se ela tivesse acabado de sair de uma. A peça de teatro, a Igreja em festa! A Igreja escura, os olhos fechados... O primeio "primeiro beijo" '... A garoa caía.

-A segunda: ' A carta mandada, a carta recebida... A manhã fria, mas agradável. Então, ela: Os cabelos castanhos, quase loiros, caindo às coxas; Os olhos escuros, embalados no forte cheiro de café, que haviam acabado de tomar. A calçada vazia, o banco ao sol! O vento dourado, os olhos fechados... O segundo "primeiro beijo" '... A garoa caía.

- A terceira: ' A rua em comum, os ônibus em comum... As tardes quentes, mas agradáveis. Então, ela: Os cabelos loiros, sempre presos; os olhos negros, embalados no fino cheiro de perfume, insistente e permanente. A praça vazia, os balanços dançando. A areia fria, os olhos fechados... O terceiro "primeiro beijo" '... A garoa caía.
- A quarta: ' A corrida cotidiana, os olhares discretos... As manhãs quentes, mas agradáveis. Então, ela: Os cabelos castanhos, bastante curtos; Os olhos claros, cor de verniz, embalados no palpável cheiro de batom, rímel e base. A sala vazia, a música baixa. Os brilhos contínuos, os olhos fechados... O "quarto" primeiro beijo... A garoa caía.
- A quinta: ' As conversas gigantes, as músicas trocadas... As tardes frias, mas agradáveis. Então, ela: Os cabelos castanhos, cor de mel, Os olhos azuis, reflexo do mar, embalados no rico cheiro de Deus. Os choros sinceros, as promessas lançadas. A vida ao alto, a proposta de tudo, banhada às águas do nada. A mudança de rumo, o abrupto adeus. A cabeça confusa, os olhos fechados... Sem sequer um "primeiro beijo"... A garoa caía.
-A sexta, e mais forte lembrança: ' Conseqüência das outras, mais sentimento que lembrança... Os dias frios, desagradáveis. Então, ela: A dor no peito, a angústia permanente, a náusea que tomava seus sentidos. O medo de escuro, o terror do incerto. A cabeça baixa, os olhos fechados... A primeira lembrança... A garoa caía.
... Abriu os olhos, assustado. Deveriam ter se passado apenas alguns segundos. As peças de dominó permaneciam lá, em fila. A mesma seqüência se repetia: Do 1 ao 6, várias vezes. Como em sua cabeça... A grande serpente/muralha, vista da cama, parecia forte e imponente, familiar.
Olhou pela janela... Gotículas condensadas acariciavam o vidro embaçado, turvando a visão para o lado de fora. Vagarosamente, estendeu seu indicador, e com um impulso rápido, atingiu a primeira peça, ao lado da cama.
A garoa cessara.

sábado, 15 de agosto de 2009

Conforto


Intenso calor que irradia
E do corpo quente flui ao frio
Não alegra nos momentos de tristeza
Muito menos configura a maldade na beleza
Mas é algo que, no fim do dia
Adormece um coração vazio.
Sentimento amórfico, diria
Ou quem sabe uma definição vil
Que se porta como meio de transporte
Conseguindo dar calor à morte
Pois o medo de dormir sacia
Adiando o próximo nascer sombrio.
Como um corpo inerte em desvalia
Ele é o dono do viver doentio
Enganando-se de forma convincente
Refletindo a sombra do contente
Em um ato de dramaturgia
Acendendo a ponta do pavio.